top of page

O Peso da Invisibilidade

  • Foto do escritor: Rede Abrigo
    Rede Abrigo
  • 13h
  • 3 min de leitura

O que a história de Gerson "vaqueirinho" revela sobre um país que falha com suas crianças acolhidas.


Verônica Oliveira e Gerson de Melo Machado, conhecido como "Vaqueirinho" - (crédito: Material cedido ao Correio Braziliense)
Ex - Conselheira Tutelar Verônica Oliveira e Gerson de Melo Machado (crédito: Material cedido ao Correio Braziliense)

Nos últimos dias, a morte de Gerson de Melo Machado, jovem de 19 anos atacado por uma leoa após invadir voluntariamente a jaula no zoológico de João Pessoa, expôs ao Brasil uma realidade que, para quem vive o cotidiano do acolhimento, não é novidade. A história dele poderia ter sido apenas mais uma entre tantas outras que seguem invisíveis, mas desta vez ganhou manchetes e atenção nacional. E, como mostra a reportagem do Correio Braziliense, essa tragédia não começou no zoológico. Ela começou muitos anos antes, numa infância atravessada por abandono, negligência e um sistema de proteção que não conseguiu protegê-lo.

Gerson cresceu em uma família marcada pela esquizofrenia. Ele e seus irmãos foram afastados da mãe ainda na infância e encaminhados ao acolhimento institucional. Todos os seus irmãos foram adotados. Ele ficou para trás. Permaneceu sozinho, à margem, vivendo em abrigos sem o acompanhamento psicológico necessário para lidar com o sofrimento mental que já aparecia cedo. Quem o acompanhou desde os 10 anos, a ex-conselheira tutelar Verônica Oliveira, relata na reportagem que ele “sofreu todo tipo de violação de direitos” ao longo da vida. Antes de chegar à jaula, Gerson fugiu de abrigos, foi encontrado sozinho às margens de uma rodovia, passou por unidades socioeducativas, acumulou episódios de vulnerabilidade extrema e retornos sucessivos ao sistema que deveria ser de proteção. Nunca houve continuidade de cuidado, rede ou estabilidade.

A reportagem mostra ainda que, já adolescente, Gerson demonstrava medo do mundo e fragilidade profunda. Ele chegou a preferir a prisão às ruas. Buscava a prisão como refúgio, porque entendia que ali teria comida, vigilância e algum nível de proteção. Suas passagens pela polícia eram tentativas de sobreviver. Tentativas de pedir ajuda em um sistema que nunca lhe ofereceu condições reais de vida. Quando escalou a jaula da leoa, no domingo que terminou em tragédia, aquilo não foi um ato repentino, mas o desfecho de uma trajetória marcada pela ausência de cuidado desde a infância.


E é aqui que precisamos ser claros: histórias como a de Gerson não são exceções. Não são raras. Não são casos isolados. São histórias que se repetem com frequência em abrigos de todo o Brasil. Em cidades grandes e pequenas, no Norte, no Nordeste, no Sudeste, encontramos adolescentes que crescem no acolhimento separados dos irmãos adotados, jovens com sofrimento psíquico grave sem atendimento especializado, crianças que passam anos em acolhimento sem rede familiar, jovens que saem do acolhimento e preferem a prisão do que viver na desproteção das ruas e meninos e meninas que completam 18 anos e deixam as instituições diretamente para a rua, sem moradia, sem renda, sem acompanhamento psicológico e sem perspectivas. Possivelmente quem trabalha com acolhimento está com alguns nomes na cabeça ao ler. Desses adolescentes, muitos acabam reproduzindo trajetórias de abandono. Outros simplesmente desaparecem das estatísticas. A sociedade quase nunca vê. Mas os abrigos veem todos os dias. E nós também.

Isso não acontece por falta de dedicação dos profissionais do acolhimento. Pelo contrário. São pessoas que trabalham além das condições reais, que se desdobram em equipes reduzidas, que enfrentam a ausência de recursos, a falta de profissionais especializados e a sobrecarga constante. Mas quando o sistema não garante investimento, quando não há políticas de saúde mental eficazes, quando os vínculos não são fortalecidos e quando a criança transita por anos sem suporte consistente, o resultado é sempre o mesmo: vidas interrompidas, trajetórias marcadas pela dor e a sensação de que ninguém está olhando.

É por isso que, na Rede Abrigo, trabalhamos todos os dias para que essas histórias não se repitam. Temos cobrado saúde mental, fortalecimento de vínculos, continuidade de cuidado, articulação intersetorial e políticas públicas que respondam à realidade concreta das crianças acolhidas. E seguiremos fazendo isso, porque sabemos que o abandono não é um destino inevitável e porque acreditamos que cada criança merece crescer amparada, vista e protegida.

A morte de Gerson apenas expôs, de forma incontornável, a falha estrutural que atravessa o acolhimento institucional. Não é um episódio isolado, mas o resultado de anos de desarticulação, ausência de cuidado e falta de respostas para crianças e adolescentes que dependem integralmente do Estado para sobreviver. O acolhimento como é hoje é uma máquina de moer gente, ou pior, de moer crianças. E enquanto continuar funcionando dessa forma, seguiremos assistindo vidas sendo empurradas para destinos impossíveis.


 
 
 

Comentários


Não é mais possível comentar esta publicação. Contate o proprietário do site para mais informações.
principal_branca.png
Design sem nome (19).png

Links úteis

O Instituto Rede Abrigo trabalha pra garantir que crianças e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento tenham seus direitos respeitados, desenvolvimento pleno e afeto. 

Transparência

Blog

Contato

mail_60dp_FFFFFF_FILL1_wght400_GRAD0_opsz48.png
phone_enabled_60dp_FFFFFF_FILL1_wght400_GRAD0_opsz48.png

+55 21 99253 4272

home_pin_60dp_FFFFFF_FILL1_wght400_GRAD0_opsz48.png

Travessa do Paço, 23, Sala 305 | Centro, Rio de Janeiro | RJ

  • Instagram
  • Whatsapp
  • Facebook
  • Youtube
  • LinkedIn

O Instituto Rede Abrigo, inscrito no CNPJ nº 28.786.179/0001-73, é uma associação sem fins lucrativos que, nos termos da legislação tributária brasileira, goza de isenção dos tributos federais aplicáveis às entidades sem fins lucrativos sobre suas receitas próprias.

© 2025 Instituto Rede Abrigo. Todos os direitos reservados. 

bottom of page