Por Douglas Lopes | Diretor da Rede Abrigo

As violências contra criança e adolescente nunca foram um tema estranho na minha criação. Não porque eu sofri algum tipo, mas porque a história da minha família passa por esse lugar.

Minha avó materna veio sozinha, com 16 anos, de Cuiabá para o Rio de Janeiro porque seu pai queria forçá-la a casar. Ela estava grávida. No Rio, ela se casou com meu avô materno, que a violentava fisicamente.

Com 32 anos minha avó resolveu abortar na sua 6ª gravidez. O procedimento mal feito levou minha avó ao óbito. Minha mãe, na época com 8 anos, foi entregue pelo pai para ser criada pelos vizinhos. Dos 8 aos 21 anos minha mãe morou com uma família onde a mulher a fazia de empregada e o homem tentava molestá-la. Com 21, minha mãe se casou com meu pai e então a vida seguiu. Minha mãe nunca escondeu essa história nem de mim nem da minha irmã.

Em 13 março de 2010 fiz minha primeira visita a uma instituição de acolhimento de crianças e adolescentes, ou, como a maioria de vocês devem conhecer pelo nome, um abrigo. Até então a única coisa remotamente parecida a um sistema de acolhimento, ou abrigo, que eu conhecia era o que havia visto no orfanato em novelas e na TV. Na época, com 17 anos, resolvi me voluntariar junto com um grupo de amigos num abrigo porque sentia a necessidade de fazer algo a mais para a sociedade. Não existia pretensão além de ajudar.

Até ser confrontado pela realidade.

O abrigo não era aquele monte de criança uniformizada feliz, cantando e fazendo coreografias, e com uma tia Carol (para quem não via, era a responsável pelo orfanato da novela Chiquititas) que era a mãezona de todas as crianças. Eram crianças com traumas, machucados tanto emocionais quanto físicos, vítimas das mais diversas configurações de violência em uma instituição incapaz de lidar, e trabalhar, com essas questões para além de dar o teto, a comida e os relatórios obrigatórios pro poder público. Aquelas crianças vinham de história como da minha vó e da minha mãe. Aquele local era o espaço pra onde elas deveriam ter ido, caso o poder público fosse capaz de alcançar as crianças que sofrem violência em suas casas. Desde então nunca se passou um dia sem eu pensar nas crianças e adolescentes afastados de suas famílias e acolhidos em instituições. Mas nos primeiros anos, encarava o trabalho como algo voluntário e um hobby. Mesmo sem saber que carreira seguir na vida, trabalhar com acolhimento nunca foi uma possibilidade a ser considerada na mesa. Mas as coisas mudam.

Em 2013 surge, ainda em um esboço inicial, a ideia da Rede Abrigo.

Depois de algum tempo trabalhando em acolhimento, eu e meus amigos nos aprofundamos mais na política pública em questão e entendemos que existia um problema sistêmico no acolhimento, e a Rede Abrigo surge como a nossa resposta. Um pensamento um pouco precoce pros nossos 20 anos, e talvez a pouca idade foi um dos motivos pelo qual não demos prosseguimento a ideia. Pelo menos naquele momento.

Em 2016, na minha tentativa ainda de me encontrar na minha carreira profissional, depois de tentar 4 faculdades, e largar um bom emprego, como que por um acaso eu encontro todo o esboço da Rede Abrigo em 2013, e de fato me surpreendi.

A ideia era incrível. Eu mesmo me surpreendi com o que tínhamos feito. Dessa vez mais maduro, me perguntei: “Por que não?”. Juntei alguns dos meus amigos novamente e fundamos o Instituto Rede Abrigo. E então, na direção dessa organização, me encontrei. Estava sempre ali, na minha frente.

Atualmente o Instituto Rede Abrigo, ou como chamamos carinhosamente só de Rede, têm seus 4 anos recém completados. Contamos com 40 voluntários em seus 4 departamentos e 8 projetos com alcance em 14 cidades. Com a pandemia conseguimos comprar mais de 1 tonelada em doações para pelo menos 27 abrigos. De comida até material de lazer. E estamos apenas no começo.

E pensar que no dia 12 de março, um dia antes do primeiro dia que pisei em um abrigo duvidaram que fossemos ficar mais de 3 meses trabalhando. De fato. Não ficamos 3 meses. Mas caminhando pra completar 11 anos.